Coisas de um Brasil Distante(Ou Como Acabar com a Malária)
Nosso reconhecimento e nossa eterna gratidão aos dirigentes, chefes setoriais, amigos e colegas da ex-CFP daquele tempo de pioneirismo e redobrada dedicação que, mesmo depois de tantos anos, ainda insistem em marcar nossas vidas: a minha e a do grande amigo Ivan De Lamônica.
O nome primitivo - Gleba Massapé – ficou para trás, virou passado. Morimã Apiaká, o intermediário da pacificação dos índios “Beiço-de-Pau”, não trabalhava mais para a colonizadora Conomali e nem era lembrado como deveria. Os seringais nativos, exauridos, não atraiam mais extrativistas. As quatro dezenas de sobreviventes da etnia “Beiço-de-Pau”, a maioria crianças, adolescentes e idosos, não assustavam e nem amedrontavam mais ninguém. Levados para o Xingu, depois de quase exterminados pelo “amigo” branco, afetados pela gripe, sarampo e pneumonia. E pasmem: açúcar com
arsênico presenteado por seringueiros. Inacreditável crueldade, mas é verdade. No Parque Indígena do Xingu perderam a identidade e foram absorvidos pelos parentes Suyá.
O branco novamente era senhor de mais uma imensa área vazia, quase inteiramente virgem, imemorialmente de posse secular e ancestral de várias nações indígenas. Prevalecia, agora, a determinação institucional e empresarial de povoar e colonizar. Sinais de novos tempos. A Agricultura praticada era a de sobrevivência, assentada, basicamente, na produção de arroz, milho e feijão. A voraz extração madeireira ditava o rumo e o ritmo da economia.
A Gleba Massapé, projeto de colonização privado e com um pequeno núcleo urbano, transitando para mudar de nome e se chamar São José do Rio Claro, tinha seu povoado situado logo depois do belo e piscoso rio Claro. Ficava no município de Diamantino, terra natal do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes.
A pequena e calorenta cidade, associada a Rosário Oeste, formava a dupla de sentinelas avançadas que dispunha de precárias estruturas. Foram, por muito tempo, as bases para a ocupação colonizadora do médio, noroeste e extremo norte mato-grossense. Claro, com a indispensável parceria com o avião de pequeno porte, senhor dos ares e demolidor de
distâncias. Chegava onde quase nenhum outro meio de transporte até então se atrevia a chegar.
O município diamantinense, surgido no faustoso período da mineração que buscava arrebanhar ouro e pedras preciosas para a corte portuguesa, tinha mais de dois séculos e meio de existência, tradição e história. Os tempos de glória e abundância mineradora haviam acabados. Restaram alguns lampejos de progresso e riqueza vividos no decurso dos ciclos exploratórios da borracha durante as 1ª e 2ª grandes guerras que assolaram o mundo no começo e no meio do século passado.
O seu “redescobrimento”, no início dos anos 70 veio com a construção das BR’s-364 e 163 e com o processo migratório de gente oriunda do sul do País, sustentado por um gigantesco lastro de programas e créditos proporcionados pelo governo militar, como o Polocentro, Polamazonia, Pin/Proterra, Pró-Cal, Pronazem, Probor I e II, incentivos fiscais da SUDAM e Política de Garantia de Preços Mínimos - PGPM. Dinheiro público não faltava para a implementação dos instrumentos de fomento agropastoril, fixação de
infraestrutura, colonização e garantia de preços agrícolas.
O empreendimento colonizador da Gleba Massapé, comandado pela família Briante, localizado mais ao norte e ao redor de 130 quilômetros da cidade de Diamantino, desfrutava de um emergente processo de ocupação e crescimento populacional, porém com grandes e variadas precariedades, como era bem comum naqueles tempos. O tamanho do território diamantinense, à época, era de fazer inveja a alguns países europeus.
A área da colonização dava com seus costados na margem esquerda do rio Arinos, com suas águas escuras, assim tingidas pela enorme presença de matéria orgânica. O cenário aquático, em princípio, era assustador. Para o Arinos confluía e ainda conflui o rio Claro. No encontro dos dois, não muito distante da balsa, havia um antigo cemitério, com
mais ou menos 30 sepulturas toscas, com o curioso nome de “Cemitério dos Esquecidos”, conforme indicava uma pequena placa de madeira, quase caindo, escrita em sofrível português. Fui conhecer a mistura das duas águas.
Um índio Kayabi, ao redor dos 40 anos de idade, que por ali perambulava, segurando uma garrafa de aguardente, com seu líquido bastante consumido, veio, com desembaraço, ao meu encontro usando um linguajar arrastado, misto de português pouco dominado e o tupi de sua etnia. Queria fazer negócio, oferecendo-me castanha-do-pará em casca, trazida lá das longínquas bandas de Porto dos Gaúchos, no rio abaixo. Não deu negócio. Mas, facilitou o começo de um prolongado diálogo, meio incompreensível, em virtude da triste exibição do que de pior o “civilizado” lhe ensinara como troféu da dominação imposta: a ingestão de bebida alcoólica.
Num instante de altivez e clareza de memória disse-me ele que o cemitério“ abrigava” garimpeiros, castanheiros, seringueiros, poaeiros, peões, mateiros e outros aventureiros sem a correta identificação pessoal e profissional. A maioria dizimada, implacavelmente, pela malária, quando vinha em busca da frágil assistência médica em Diamantino pelas mãos do incansável e abnegado Dr. Mazagão.
Conheci a região no período final da mudança de nome. Mas, foi no trimestre inicial de l980, que o Ivan De Lamônica, titular da Agência Regional da ex-CFP, seguindo para Porto dos Gaúchos e a então vila de Juara passou por Diamantino onde pousou a “gigante” aeronave que o conduzia e nos encontramos no campo de aviação, no “Novo Diamantino”.
No rápido encontro, deu-me notícias, atualizou-me das coisas do mundo urbano e repassou instruções. E mais: disse que havia uma demanda pela presença e atuação da ex-CFP em São José do Rio Claro, pois a produção de arroz, como cultura anual e “amansadora de terras” já se fazia presente em razoável escala. Recebi a determinação para me deslocar até lá e avaliar a necessidade da implementação de um posto de compras,com um mínimo de estrutura. Ordem dada, missão a cumprir.
No mesmo dia busquei auxílio junto a EMATER local (atual EMPAER-MT), inesquecível parceira da ex-CFP na interiorização e disseminação da PGPM, com a intenção de conseguir um veículo e um funcionário para realizar a viagem. Não podia imaginar a epopéia que viveria na companhia do extensionista “Valdir Cafezinho”.
No dia seguinte, bem cedo, com o veículo do tipo jipe Gurgel abastecido e com gasolina de reserva num galão, e mais corda, enxada, facão, pá, enxadão, matula e água a bordo, debaixo de intensa chuva, a dupla partiu em direção ao destino pretendido. No “Novo Diamantino”, rumamos à esquerda, já no leito enlameado da BR-364, em busca do entroncamento desta com a “estrada” que demandava a São José do Rio Claro, pouco à frente da fazenda Sete Placas, dos irmãos Zulli.
Após uma hora e pouco de trânsito pela BR-364, construída na trilha deixada por Rondon quando da implantação das Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas,
alguma coisa parecida com uma estrada surgiu à direita. Um picadão batido e meio aplainado pelo uso e trânsito majoritário de tratores e com muito zigue-zague, com vontade de ser verdadeiramente uma razoável via de trânsito. A distância a ser percorrida rondava a casa dos 100 quilômetros. Não havia esperança de melhora na situação a ser enfrentada. Era continuar ou continuar. Assim foi feito.
Do entroncamento, avançamos mais ou menos 50 quilômetros. Pernoitamos no caminho. No galpão de máquinas da fazenda Bóia Fria, do saudoso e prestativo amigo Serafim Ticianel. Era o que de melhor podia oferecer. Para quem estava “perdido”, nada mal. A chuva teimava em cair, contrariando a vontade dos viajantes. No dia seguinte, ainda de madrugada, prosseguimos na tentativa de alcançar São José do Rio Claro. Chegamos quando o sol dava adeus ao dia e com muitas “reclamações” do jipinho, sem escapamento, que roncava, ruidosamente, chamando a atenção dos poucos habitantes do vilarejo. O cansaço dominava. Chegar foi a coroação de um desejo superlativo.
Na localidade havia só uma pensão, e bem rústica, de madeira serrada, banheiro coletivo, sem chuveiro tradicional e com água fria. Nada aconchegante. No dia seguinte, bem cedinho e recuperado do cansaço, café solteiro tomado, conheci uma figura humana com alguns janeiros vividos, bem falante e simpática. Um baiano que tinha vindo do norte paranaense, onde, ainda jovem, trabalhou na ocupação das terras roxas do vale do rio Ivaí nos idos anos quarenta e cinqüenta. À época reduto endêmico da malária. Conhecia bem o que acontecia em São José do Rio Claro.
Amizade formada acompanhou-nos na execução das tarefas apontando os lotes onde havia produção arrozeira, com provável excedente. Milho e feijão eram para o consumo dos próprios colonos. A sobrevivência destes contava ainda com a extração de madeira, principalmente de cedrinho, angelim e peroba rosa. A sua companhia auxiliou bastante o conhecimento da precária realidade local e a avaliação pretendida. Não foi possível, naquela safra (79/80), por absoluta ausência de requisitos mínimos, operar e adquirir o pouco e pulverizado excedente da safra de arroz em casca.
Um fato alheio ao serviço me chamou a atenção. Anotei, guardei e não me esqueci dele. No improvisado e desaparelhado “hospital”, todo de madeira e piso de “chão batido”, sem médico permanente ou mesmo enfermeira de nível superior ou médio, havia um contingente de trinta pessoas internadas. Vinte e nove delas com malária e apenas uma senhora (a esposa do agrônomo Lourival Rezende da EMATER local, recém chegado de Viçosa-MG) à espera de dar à luz. Uma situação impensável nos dias de hoje, mesmo com toda a fragilidade e morosidade do complexo SUS.
Indaguei do baiano amigo como era conviver com aquela indigesta e sofrida situação. E ele, do alto de sua experiência e sofrimento me disse: “Filho, o que acaba com a malária é o pé do homem”. E explicando acrescentou: daqui a alguns anos isso aqui não terá mais esse tipo de doença. O homem na sua sanha de progredir, sem medir conseqüências, abrindo estradas, derrubando a mata, queimando a madeira encoivarada e a vegetação viva, plantando pastos e lavouras, findará a malária. A prosperidade que paulatinamente chegará neutralizará nas pessoas as dores e os sofrimentos do passado. Foi assim no Paraná. Será igual aqui.
A profecia se fez. Não há mais malária. Não existem mais estradas impraticáveis.
Não há mais agricultura exclusivamente de sobrevivência. Não há mais madeira para ser extraída. Quase não se vê mais rios e lagoas com águas puras, cristalinas e livres de contaminação por agrotóxicos. Animais e peixes não são mais abundantes. Restam poucos pioneiros. Até mesmo as lembranças e os fatos narrados se aninham nos escaninhos da memória e do tempo. Lembrá-los é dever dos que diretamente ou indiretamente os vivenciaram, apenas como resgate de uma memória que precisa ser mantida viva diante de comportamentos e épocas tão diferentes.
Petrônio Sobrinho.
(abril/2013)