AMEI
(ver) O DOMINGUINHOS.
Acho que foi em fevereiro ou
março. Lembro-me que o carnaval já havia acontecido. E nesse lapso de
esquecimento não me lembro o dia da semana. O ano, sim, 1980. A cidade, a
histórica Diamantino, com seus mais de dois séculos e meio de existência,
encravada bem no começo do médio-norte mato-grossense, nas proximidades das
nascentes (são várias lagoas) do gigante rio Paraguai, que milhares de
quilômetros abaixo, junto com o Paraná, formam o estuário do rio da Prata,
tendo de um lado território argentino e do outro uruguaio.
O dia
amanheceu com sol aberto e pra variar o calor era sufocante. A ressaca,
cobrando os exageros e atestando a bebedeira na noite anterior, tornava o
ambiente ainda mais hostil. Tudo isso embalava uma preguiça danada e o pedido
para que o mundo acabasse em barranco para morrer escorado. Não sei bem os
motivos, mas acho que também estava um pouco “deprê”.
Os companheiros Paulo Hummel e
André Luiz haviam deixado Diamantino nos últimos dias. Retornaram a Brasília,
passando por Cuiabá. Ficara sozinho. Aguardava uma substituição que teimava em
não chegar.
Diamantino era uma cidade
típica do interior brasileiro. Poucas oportunidades de trabalho. Diversão quase
nenhuma. População pacata e hospitaleira. A igreja católica exercia forte
influência no comportamento da sociedade local. Tudo começava a mudar. E como!
Havia gargalos que irritavam.
Um deles era no setor de comunicação. Não tinha DDD. Ligação interurbana só no
posto da TELEMAT, com filas enormes. Fazia-se a inscrição de manhã e, com
sorte, a ligação era completada no final do dia ou começo da noite. Não havia
pressa no cotidiano das pessoas naturais da localidade. Só os sulistas
chegantes fugiam dessa rotina, moldados por uma cultura econômica mais
competitiva e arraigada nos seus costumes de muito trabalhar.
A nova gente que chegava de
longe, apressada, meio barulhenta, investidora em terras até então
improdutivas, além de traços marcantes e querencianos, veio com o desejo de
vencer. Dar certo na terra distante, apesar da mudança radical no clima, nas
distâncias e condições viárias e outras determinantes carências. Era o momento
ali vivenciado.
Sentado no “pequeno
mezanino” do Hotel Kaiaby buscava coragem para subir a serra e assumir o
trabalho do dia no armazém da Casemat, no distante bairro do “Novo Diamantino”,
bem no início do platô sul-leste que forma a extensa e hoje produtiva Chapada
dos Parecis, com seus inúmeros municípios que integram e fortalecem o cenário do
agronegócio mato-grossense e brasileiro.
A antiga
BR-364 ficava bem próxima e seguia sua direção noroeste, nos passos da linha
telegráfica construída por Rondon, no começo do século passado, para alcançar
Vilhena e depois Porto Velho, em Rondônia, disponibilizando caminho num mundo
distante e pouco habitado. Era comum, depois da Sucuruina, o encontro com os
índios Pareci e Nhambiquara, já pacificados e doidos para fazer negócios com os
brancos “tão bonzinhos” que, aos magotes e vindos, majoritariamente, do
sul do País, chegavam à região com uma fúria desbravadora e destruidora
descomunal num desvairado processo de insensatez típica da falta de sabedoria.
Há dias não
chovia e a poeira tomava conta da velha estrada de “chão batido” que,
diariamente, utilizava para chegar ao posto de trabalho. O pó vermelho era
tanto, bem fino, que parecia adentrar os poros e entranhar na massa corporal do
vivente. E, ali pensativo, triste, acabrunhado e desfrutando do “conforto
ressaqueano possível” ouvi um sonoro grito - “Sobrinhão” - que me tirou da
letargia e da modorrenta preguiça que me enlaçava. Não estava sonhando. Era
ele: o grande Dominguinhos, que chegava, como sempre alegre e de braços
abertos, saudando com seu sorriso envolvente o amigo, até então, entristecido e
apoquentado.
A alegria foi
tanta que, ao me levantar, acabei jogando a cadeira que sentava ao chão e,
óbvio, também me abalei para recepcionar, com a devida cortesia, o amigo que,
finalmente, vinha me substituir. Começamos, logo a seguir, a acertar a “transição
de poder”. É naquela época já tinha a tal “transição governamental”, tão comum
nos dias atuais, só que com bajulação de um lado e temor do outro. Não era o
nosso caso.
Concluída a
“transferência de poder”, fui apresentando o Dominguinhos aos técnicos do
serviço de extensão, do agente financeiro, da armazenadora e da classificação,
do sindicato rural e do sindicato dos trabalhadores rurais. Este presidido pelo
Aparício, um afro-descendente disposto, educado, risonho e que manobrava para
fundar o PT no município. Ele ainda está vivo, mas, certamente, “morto de
raiva” pelas coisas esquisitas que hoje acontecem nas hostes estreladas. Da
mesma forma, o entreguei à companhia de um jovem amigo que fizera: o paranaense
Gastão, lá “exilado” por imposição familiar.
Ele
gerenciava, morando num trailer, os serviços de abertura da fazenda Lagoa do
Cervo, plantando arroz. Era também expansivo, alegre, bom de garfo e bem
chegado numa “loira gelada”. Dias depois, veio a falecer, vitimado por um
infarto fulminante. E ao Dominguinhos coube a difícil e penosa tarefa de
enfrentar a burocracia e a precariedade das comunicações para cientificar a
família e prestar auxilio para trasladar o corpo do amigo para Ponta Grossa-PR.
Esse gesto de
grandeza e solidariedade do Dominguinhos me foi contado por pessoas
diamantinenses, minhas conhecidas, que enalteceram o seu comportamento, a sua
desenvoltura e preocupação diante de um fato triste e lamentável. E, de certa
forma inusitado, pois decorrente de uma amizade recém iniciada. Porém, sob
todos os ângulos, uma atitude altamente cristã e humanitária.
Recepcionado,
com as devidas e merecidas honras, deixei o Dominguinhos atualizado do lastro
operacional do front da “grande Diamantino”. Senti, então, que era a
minha vez de partir da velha cidade. Não aguardei os vôos da Mecom e nem da
Guará, poucos assíduos e infrequentes, quase sempre por falta de vaga. Peguei carona no carro do bispo Dom Henrique
Froehlich, e, na sua singular companhia, aportei na capital mato-grossense,
fugindo do Estevão Camolesi (Supervisor Técnico da AGMAT) que me pedia para
acompanhá-lo num prolongado raid pelo médio-norte e vale do Arinos.
Na quente
Cuiabá de outrora – e hoje mais quente ainda – reportei ao De Lamônica o
andamento da operação de compras. Alertando-o, entre outras coisas, que o
armazém da Casemat, a armazenadora do Estado, dispunha, até ali, de razoável
espaço para estocagem, mas, que deveria ser totalmente ocupado até a conclusão
do período de compras. Depois, a “guerra” era outra: remover o estoque. Para
onde?
Após tantas peripécias e bom conhecimento da
região, passei ao Dominguinhos a incumbência de ser o novo “xerife” da imensa e
carente “nação diamantinense” que, entre outras localidades, era constituída
por Nova Mutum, Brasnorte (a mais de 300 km da sede municipal), Lucas do Rio
Verde, Deciolândia, São José do Rio Claro, Alto Paraguai, Nortelândia,
Arenápolis, Santo Afonso, Nova Marilândia e Campo Novo do Parecis (à época
apenas um vilarejo em surgimento). Com exceção de Deciolândia, ainda distrito,
as demais são emancipadas e municípios com destacada participação no
agronegócio estadual e nacional.
E assim, o
Dominguinhos, com seu bom humor, disposição, contagiante alegria e enorme
facilidade de comunicação deu andamento aos trabalhos. Tornou-se figura querida
na cidade. A sua “gestão”, como não
poderia deixar de ser, foi coroada de pleno êxito. Por isso, e principalmente
por ele, essa despretensiosa e monoangular história merece ser contada e
conhecida por todos os amigos e colegas da ex-CFP.
Antes de
retornar só me restou desejar-lhe boa sorte e em seguida me mandar! Assim foi feito. Parti. E depois retornei
diversas vezes. Fiquei em Mato Grosso.
Petrônio
Sobrinho
(que mesmo sem procuração do Ivan De Lamônica, mas,
também em nome dele, reafirmo e estendo agradecimentos a todos àqueles que
estiveram em Mato Grosso vivenciando o nascer da maior fronteira agrícola do
Brasil, hoje consolidada, reconhecida nacionalmente e assombrando o mundo com a
produção de variadas comodities).